Ku Hissa
“Hiii não posso/ não podes tocar na criança porque estou/estás quente”! Ou o papá volta para casa todo animado para levar o bebé ao colo e logo é interpelado: "Estás em condições??" Quem nunca ouviu/viveu isso?
Depois do parto existe uma série de rituais/práticas culturais que os pais, os familiares próximos, e não só, devem seguir. Esses rituais variam de acordo com o contexto social.O ku hissa –estar quente- , não sei se a tradução mais feliz seria essa, é uma dentre as várias práticas culturias que marcam o período pós-parto. Este ritual, nalgumas regiões, consite em até a queda do umbigo do recém nascido só pode tocá-lo quem se tiver abstido de relações sexuais por pelo menos dois dias[1], caso contrário, se a criança for tocada por alguém “quente” terá problemas sérios de saúde e poderá morrer.
Mais ou menos podemos dizer que se trata de uma prática cultural que interdita o contacto com o bebé após um acto sexual.Evitar o ku hissa é um processo que pode significar, nalguns casos, proibição ou abstinência temporária da actividade sexual, pelos pais, familiares próximos e não só.Esta interdição ou abstinência visa afastar os "perigos", as impurezas culturalmente construidas, de grupo para grupo, advindas da actividade sexual, que se acredita afectariam a saúde do recém nascido quando não evitados.Portanto, esta fase representa um momento crucial e desafia os visados à uma busca constante da purificação, que no caso seria o não estar “quente ” de modo a poderem tocar no bebé.
Há no entanto, quem extenda o "dry season" por cerca de 3 meses, caso dos praticantes da seita religiosa zione, que só retomam a actividade sexual depois de uma cerimónia denomidada “nhimbissa nwana” (titrar a criança de casa)[2].Outros ainda, abstêm-se se sexo para evitar que a mulher engravide enquanto amamenta, pois para eles, o leite de peito será contaminado pelo sémen e por sua vez, poderá enfraquecer a criança podendo crescer com certas anomalias -ku djambela nwana.
Pois é, muitos de nós seguimos estes rituais simplesmente porque os nossos pais o faziam, estes por sua vez apenas repetiam o que os seus pais faziam assim sucessivamente, ou então porque o vizinho, amigo, tio disse, havendo até disparidades quer em relação ao signficado/significação da prática em si, quer em relação ao período certo em que os casais, e não só, devem esperar até retomarem a vida sexual, variando em função de como cada família “recebeu” a informação.O problema porém é que nunca questionamos, ou se o fazemos a resposta que recebemos é que faz parte da tradição -swa yila e pronto!
Será que um ritual se torna válido apenas porque faz parte da tradição? Qual é na verdade o valor/significação das praticas que seguimos ao longo tempos?Qual é a sua finalidade?Quem atesta o que é genuinamente tradicional e que por isso deve ser seguido?E o que acontece com a ‘tradição’ ao longo do tempo?Será que vê-mo la hoje como os nossos pais e os pais dos nossos pais a viam?Temos nós coragem suficiente de nos fazermos estas perguntas ou tudo já está culturalmente explicado por isso não é preciso perguntar mais nada?
Atenção, não estou a dizer que sou contra as práticas culturais ou ditas tradições que fazem parte da identidade social dos grupos, acho que elas são importantes e devem/podem ser seguidas, aliás se foram criadas foi porque houve algum motivo para tal, porém, julgo ser importante percebermos porque razão agimos como agimos.O facto de algumas das práticas culturais terem condicionado a visão do mundo numa certa perspectiva nos tempos idos, não quer dizer que assim seja nos dias de hoje, os contextos mudam, o conhecimento desenvolve-se, a cultura é dinâmica, obviamente que estas práticas culturais também o são, logo há que procurarmos perceber se o valor simbólico das mesmas bem como a sua essência continuam válidos nos tempos que correm ou não.
Voltando ao ku hissa alguma vez nos perguntamos como as parteiras, os médicos ou as babás cuja “ferramenta de trabalho” são recém nascidos fazem a “gestão” da sua vida sexual em função do ku hissa?Porque será que para este grupo de profissionais já não nos incomoda tanto assim o estar ou não “quente”?Porque será que para este grupo de profissionais não se aplica esta interdição?E o ku djambela nwana é (i)real?É verdade que para uma mãe que amamenta a probailidade de engravidar é reduzida, entretanto, caso engravide, ela pode continuar a amamentar.
Como se pode ver há uma necessidade de despirmos a característica dogmática da "tradição" , modernizando-a, e questionarmos se ela se enquadra no contexto actual pois, a meu ver em alguns casos ela, entra em conflito com a nossa forma de ser e estar, nos dias de hoje, e com os avanços trazidos por outras formas de conhecimento que também são tradionais mas ao mesmo tempo dinâmicas.
Bem, não posso deiaxar de dizer que o ku hissa, o ku djambela e os demais rituais têm o seu mérito pois, fazem com que se preste maior atenção ao recém nascido, evitam que os papás procurem se “satisfazer" lá fora, também evitam as gravidezes seguidas, principalmente nas zonas rurais onde quase que não se usam métodos contraceptivos ditos modernos propiciados via unidades sanitárias mas, por outro lado, transformam as relações sociais há vários níveis, e acabam "desordenando" a vida sexual do casal, principalmente pelo facto de existirem disparidades em relação ao prazo do período “seco”, isto pode fazer com que retorno a normalidade da vida sexual pelo casal leve muito mais tempo, com todas as consequências que possam daí advir....
[1] JUNOD, H. Usos e Costumes dos Bantu, Arquivo Histórico de Moçambique, 1996, Pag 66,
[2] LOFORTE, Ana Maria, Género e Poder Entre os Tsonga de Moçambique, Promédia, Colecçao Identidades, Pag 214.